Setor que acumula historicamente uma monstruosa receita na casa dos bilhões, as operadoras de saúde voltam a protagonizar os folhetins noticiosos com a possibilidade de novos e escandalosos aumentos. Depois de consecutivas majorações, a notícia até parece velha. Mas não é. E ela não para por aqui, porque quem pode seguir o mesmo ritmo é a bilionária indústria farmacêutica. O prejudicado, parece óbvio, é sempre o paciente.
O preço dos medicamentos já subiu 5,6% no início de abril, como reposição da inflação. Nessa mesma esteira, o setor teve o maior reajuste da década (10,89%) no ano passado, quando alguns medicamentos ultrapassaram o índice e chegaram a ficar quase 20% mais caros. E, como se não bastasse, ainda neste ano um segundo aumento pode acontecer em pelo menos 15 estados – entre eles a Bahia. Desta vez, a justificativa é compensar o corte do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre combustíveis e energia elétrica. Nessa equação cheia de números e percentuais, o beneficiado também parece óbvio e é sempre a indústria.
Legalização dos absurdos
Mas o que tem pesado mesmo no bolso do consumidor são os consecutivos aumentos nos planos de saúde. Se 20% nos remédios já é muito, imagine um aumento de 500% para quem tem 59 anos. É o que prevê o projeto de alteração da Lei dos Planos de Saúde, que tramita na Câmara dos Deputados há quase duas décadas e deve ser votado até junho. Caso seja aprovado sem mudanças, o beneficiário com esta idade que paga, por exemplo, R$ 500 em seu plano, pode passar a ter de desembolsar R$ 3 mil pelo serviço.
Lucro nunca é demais
As operadoras alegam perda financeira durante a pandemia para tentar justificar essa majoração, mas historicamente esse é um mercado econômico com lucros exorbitantes. Só em 2022, foram R$ 2,5 milhões de rendimento. É bem verdade que durante o período houve um recuo no setor, mas o que as operadoras parecem esquecer é que essa queda veio após um registro de lucro recorde durante a pandemia, quando as cifras chegaram à casa do bilhão.
Lobby no Congresso
Além dos lucros exorbitantes, o setor é conhecido também pelo mais poderoso lobby do Congresso. A aprovação, por exemplo, do chamado rol taxativo – que depois veio a cair – foi fruto de um orquestrado movimento lobista, que entre as mais esdrúxulas justificativas em seu canto da sereia usa o discurso de “fortalecer os planos para desafogar o SUS”. O que claramente não aconteceu durante os anos 2000, período de ouro para as operadoras.
As quase duas décadas de espera do projeto de alteração da Lei dos Planos de Saúde não são por acaso. Fazem parte do movimento de empresários que atuam para obter a desregulamentação do setor.
De lá para cá, já foram três relatores. O atual, o deputado federal Duarte Junior (PSB- -MA), se diz espantado com a ousadia do texto original, completamente pró-operadoras. Para se ter uma ideia, a jogada do reajuste de até 500% aos 59 anos é uma estratégia para burlar o Estatuto do Idoso, que proíbe aumentos a partir dos 60 anos.
Correndo solto
Essas, no entanto, são apenas tentativas de legalizar os absurdos. Eles já correm soltos nos planos coletivos. Neste tipo de adesão, são as operadores que definem os reajustes e não a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), como acontece nos planos individuais. Advogada e professora de Direito da Saúde, Fabiani Borges conta que não são de agora casos de reajustes que chegam a 160% e até a 200%. “Mas o Judiciário baiano tem agido com lisura e proibido, em sua maioria”, disse à Rádio Metropole.
Os beneficiários dos planos individuais também têm muito do que reclamar. No ano passado, o reajuste foi de 15,5%, o maior em 22 anos. O de 2023 deve ser anunciado pela ANS até junho, mas a estimativa da Associação Brasileira de Planos de Saúde é que fique entre 10% e 12%.
Bahia no topo
Os consecutivos aumentos têm rendido primeiras colocações às operadoras. No ranking de reclamações do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), por exemplo, as empresas de plano de saúde lideraram em nove dos últimos dez anos. No ano passado, 27,9% das queixas foram contra elas. Os principais motivos eram contrato, falta de informação e, claro, reajustes.
E, ao que tudo indica, o que era ruim vem ficando pior ainda. Apesar do desempenho constante no ranking, um levantamento realizado pela ANS a pedido do Jornal Metropole apontou, a partir do Índice Geral de Reclamações (IGR), que os beneficiários vêm ficando cada vez mais insatisfeitos desde 2018, quando a métrica foi criada. A Bahia se destaca, figurando sempre, pelo menos, no top 5 das reclamações e acumulando números muito superiores à média nacional. Só neste ano, já foram mais de 1.400 queixas registradas no estado.
Sem transparência
A reclamação dos beneficiários nem sempre é só com relação ao índice de reajuste, mas principalmente à falta de transparência sobre os custos envolvidos e a forma de fazer o cálculo. É quase impossível questionar o aumento, já que o paciente simplesmente não tem acesso à base de dados utilizada pela operadora. Ainda assim, a advogada Fabiani Borges afirma que, na maioria dos casos judicializados, o beneficiário acaba saindo vencedor.
“Se você sai do seu plano hoje e vai procurar um plano novo, 99% dos planos que você procurar vão oferecer um valor abaixo do que você paga hoje. Essa conta não fecha. Que conta é essa que o reajuste para o usuário de casa, antigo, é superior ao novo usuário?”, provoca a advogada.
Fechando a carteira
Hoje, não por coincidência, 80% da população coberta por planos de saúde possui contratos coletivos, aqueles com reajustes livres. São 8,9 milhões de pessoas em planos individuais e familiares frente a 41,3 milhões de beneficiários de planos coletivos. A professora universitária e advogada Cristiana Santos acredita que propositalmente as operadoras têm deixado de oferecer o tipo de plano cujo reajuste é regulado pela agência fiscalizadora do setor.
“A ANS não fiscaliza a margem de lucro, a despesa ou a receita desses planos coletivos. Então o mercado foi para aquilo que era confortável e acabou nessa bagunça de fechar a carteira de [clientes dos planos] individuais e explorar quem está no [plano] coletivo”, afirma em entrevista à Rádio Metropole.
A teoria da professora é compartilhada pelo Idec, que inclusive já cobrou da ANS ações contra aumentos abusivos em planos coletivos, mas nada ainda foi feito. O diagnóstico desse jogo de percentuais e estratégias para burlar a regulação é quase uma sentença de morte para o consumidor e o serviço de saúde.
Fonte: Metro 1